Tem
cabelos longos, apertados numa trança ruiva. Olhos grandes, verdes, e o rosto
salpicado de sardas. Usa um vestido vermelho e branco, com rendas e bordados.
Foi durante muito tempo a boneca favorita da Joana. A única que tinha um nome: Sofia.
O pai tinha-lha trazido de uma das suas viagens à Alemanha. Outros tantos
brinquedos seguiram-se – era tripulante, passava a vida a voar –, mas Sofia era
especial. Um dia, o pai disse à Joana e aos seus primos algo que iria mudar a
vida daquela boneca. Explicou-lhes que havia muitos meninos, em Portugal e no
resto do mundo, que não tinham com que brincar. E que eles deviam ajudá-los
doando os brinquedos que já não queriam.
Com
uma lágrima a verter dos olhos, Joana agarra na pequena Sofia e entrega-a ao
pai. Ele faz o que já tinha feito com tantos outros brinquedos, roupas e até
com os produtos de higienete (sabonetes, champôs) que trazia dos hotéis onde
ficava a dormir. Sem saber o que estava a acontecer, Sofia vai parar ao
Sindicato do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), onde está um dos pontos
de recolha de donativos da Take C’Air, uma plataforma de voluntariado que
nasceu graças à iniciativa de pessoas ligadas à aviação. Ali fica, vários dias,
sem perceber como a Joana tinha tido coragem de a abandonar assim, estando ela
ainda tão bem conservada. Pensava que era a sua melhor amiga...
Os
sacos e caixotes amontoam-se, de vez em quando alguém vem buscar, mas Sofia vai
ficando para trás. Até que, um dia, alguém agarra o saco onde ela está. Vai
parar a uma garagem em Linda-a-Velha. Umas mãos agarram-na no fundo do saco e
colocam-na numa estante. Confusa e aterrorizada, olha à volta, tentando
perceber onde está e o que tencionam fazer com ela. A vista é privilegiada.
Caixotes e sacos por todo o lado, a serem remexidos por várias pessoas, numa
azáfama total. De onde em onde, há etiquetas a dizer “Take C’Air” e papéis a
assinalar “Luansda”, “Praia” ou “Maputo”. Calças, blusas, casacos e meias vão
saltando das caixas. Uma das pessoas está sentada no chão a emparelhar sapatos,
enquanto outra remexe os sacos cheios de livros e brinquedos. Sofia ouve-os a
falar, mas não entende nada. “Onde coloco as coisas para os sem-abrigo?”. “É
ali!”. “Onde estão as etiquetas para a Praia?”. “Acolá!”.
De
repente, volta a sentir medo, é agarrada. Vai parar dentro de um saco de
plástico, juntamente com umas calças, umas havaianas e um livro de colorir. É colocado
um papel a dizer o destino, mas Sofia não consegue ver qual é. Quando dá conta,
está novamente na bagageira de um carro, e tem ao lado vários sacos iguais ao
seu, cheios de roupa, brinquedos e sapatos. “É o fim”, pensa, lágrimas a
escorrerem-lhe pelo rosto, antecipando um qualquer caixote de lixo industrial
como destino. Mal ela sabe que a aventura ainda nem começou.
Quando
a mala do carro é aberta, dias depois, Sofia vê uma mulher fardada. Acabou de
chegar ao Terminal de Tripulações do Aeroporto de Lisboa. O saco onde está é
passado no raio-X e, de seguida, colocado numa prateleira onde se acumulam mais
sacos. Dias a fio, Sofia vê pessoas fardadas a entrar e a sair do terminal, a
passar o controlo de segurança e a seguir para os aviões. Pensa que vai ficar
ali para sempre. Volta e meia, alguém agarra um saco, mete-o dentro de uma mala
grande preta e sai também. Mas ninguém parece reparar na boneca ruiva, de
sardas e olhos verdes. Até que, um dia, um rapaz agarra nela e nos seus
companheiros, e mete-os na mala.
Passam-se
várias horas. Sofia continua prisioneira, abafada dentro da bagagem. Consegue
distinguir o som dos trolleys a abrir
e a fechar, o tlim das campaínhas, as
conversas sobre aviação. E o discurso a anunciar a chegada a São Tomé e
Príncipe. De repente, tudo cessa. Seguem-se horas intermináveis. Quando
finalmente é resgatada, Sofia estremece. A luz do sol é forte, a humidade
intensa. Vê o rosto de quem pegou nela em Lisboa e dos colegas. Chegou à Casa dos Pequeninos, um projectos da Cáritas
em São Tomé que acolhe crianças vulneráveis. O que querem dela, afinal? Está
cada vez mais confusa.
É
levada ao piso de cima.Numa sala, estão vários bébés e um dos tripulantes que a
trouxe está a dar biberão a um deles. As roupas e os sapatos são entregues à
directora da casa. Os brinquedos e o material escolar regressam ao andar de
baixo. Mal entram no pátio, os tripulantes são rodeados de crianças, aos
saltos, a gritar: “temos visitas”. Uns pedem colo, outros agarram nas canetas
novas e começam a rabiscar os braços dos recém-chegados.
Uma mão pequena agarra
Sofia. Os seus olhos verdes encontram uma menina de cor, olhos escuros,
cintilantes, com um sorriso que enche todo o rosto. Sofia lembra-se do dia em
que viu a Joana pela primeira vez. Fecha os olhos e sorri. “Desculpa, não devia
ter duvidado de ti”, diz-lhe em pensamento. Percebe finalmente que não perdeu a
amiga de sempre, ganhou uma nova, que precisava mais da sua amizade
Texto por Rita Faria